Uma parcela expressiva do orçamento do Ministério da Saúde tem sido utilizada por parlamentares como uma forma de emenda extraoficial, burlando as normativas de fiscalização e transparência impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Desde maio, essas indicações já ultrapassaram a marca de R$ 2,9 bilhões, originárias do orçamento discricionário da pasta, ou seja, verbas sem destinação previamente estabelecida.
A prática de destinação desses recursos por deputados e senadores é evidenciada por meio de ofícios enviados a municípios e publicações em redes sociais, onde se atribuem a autoria pelos repasses. Contudo, a ausência de um mecanismo de transparência dificulta a identificação do montante total direcionado por critérios políticos.
Novas regras e questionamentos
Em maio, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha (PT), implementou novas diretrizes por portaria para que as transferências ocorressem em parcela única, documento que serve de base para as liberações. Embora o governo Lula (PT) negue que o orçamento da Saúde seja objeto de negociação política, a pasta afirma que a análise dos pedidos é técnica, e que o acompanhamento dos congressistas é natural.
“É absolutamente natural que parlamentares se engajem publicamente na promoção dos investimentos feitos nos municípios, mesmo que isso não implique qualquer tipo prévio de acordo político ou de indicação parlamentar para esses repasses”, declarou o Ministério da Saúde em nota.
Diferente das emendas parlamentares tradicionais, que exigem a identificação dos responsáveis políticos e a criação de contas bancárias específicas para rastreamento dos gastos, os repasses em questão não são classificados como emendas, escapando assim das exigências de transparência do STF. O ministro Flávio Dino, relator de ações sobre a transparência das emendas no STF, já interpelou o governo sobre a questão, após uma reportagem da imprensa. Em resposta, o governo federal negou a existência de “emendas de comissão paralelas” ou de um “novo Orçamento Secreto”.
Casos específicos e valores
Secretarias de estado e municípios de São Paulo foram os maiores beneficiados por essa modalidade de verba, recebendo R$ 288,22 milhões até a última sexta-feira. Em contraste, o Distrito Federal foi a unidade da federação menos contemplada, com R$ 2,4 milhões.
- O deputado Valdir Cobalchini (MDB-SC) informou um vereador de Águas Mornas, em Santa Catarina, sobre a indicação de R$ 271 mil. O valor foi autorizado pelo ministério em julho.
- A senadora Ivete da Silveira (MDB-SC) comunicou vereadores catarinenses sobre repasses que somaram R$ 2,3 milhões para Águas Mornas, Balneário Piçarras, Calmon e Porto Belo.
- Documentos da Prefeitura de Canoas, no Rio Grande do Sul, mostram uma proposta de R$ 460 mil indicada pelo deputado Ronaldo Nogueira (Republicanos-RS).
- Um assessor do deputado Carlos Zarattini (PT) orientou gestores de Paraibuna, em São Paulo, sobre um valor de R$ 300 mil, mas o município ainda não foi contemplado.
- A prefeitura de Araguaína, no Tocantins, recebeu R$ 14,5 milhões, apesar de não ter solicitado apoio parlamentar.
- A prefeita de Damião, na Paraíba, Simone Azevedo, mencionou em redes sociais um recebimento de R$ 300 mil como “emenda” da senadora Daniella Ribeiro (PP-PB), embora o recurso fosse do próprio caixa do Ministério da Saúde.
- O deputado Fausto Pinato (PP-SP) também celebrou publicamente um pagamento de R$ 500 mil para Brotas, em São Paulo, classificado por ele como “emenda extra”.
Dinâmica política e gestão
Autoridades do Congresso e gestores de secretarias de Saúde, em caráter reservado, indicaram que esses recursos extras da saúde estão sendo usados em negociações do governo para atender a demandas de parlamentares. Geralmente, os pedidos são encaminhados às lideranças partidárias. Dois integrantes do governo, também sob reserva, afirmaram que a Secretaria de Relações Institucionais (SRI), atualmente comandada por Gleisi Hoffmann (PT), é quem define quais propostas serão aprovadas, e que há pressão por ampliar as verbas disponíveis para esse tipo de negociação política. Antes de Gleisi, a SRI era chefiada pelo atual ministro da Saúde, Alexandre Padilha.
Essa forma de utilização de recursos sem transparência já foi observada na gestão anterior, de Jair Bolsonaro (PL), e persiste no atual governo. Auxiliares de Padilha justificam que a portaria que unificou as transferências aperfeiçoou o instrumento, direcionando os valores para políticas federais prioritárias, como mutirões de cirurgias, credenciamento de equipes e campanhas de vacinação, embora o documento exija que apenas parte da verba seja aplicada nessas ações.