Em Salvador, a pichação deixou de ser apenas um traço na parede para virar uma forma de demarcação territorial usada por facções criminosas, segundo pesquisadores ouvidos pela reportagem. O gesto que antes era, para muitos, resistência urbana, hoje também serve como sinalização de controle.
Grafite e pichação: mesma origem, rumos diferentes
Apesar de usarem ferramentas parecidas, como o spray, o grafite e a pichação tomaram caminhos distintos. O grafite acabou ganhando espaço em ambientes institucionais e culturais. A pichação manteve traços mais simples e a intenção de causar impacto — um choque estético pensado para ser notado.
“A ideia da pichação é que você tenha de fato causar um olhar de choque”, disse Anderson Eslie, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Anderson lembra que, historicamente, a pichação também funcionou como registro urbano e crítica social. Originada no movimento punk dos anos 1970 na Bahia, ela teve crescimento mais intenso entre 1997 e 2002, quando surgiram grupos majoritariamente masculinos, negros e vindos de bairros periféricos. Esses coletivos trocavam tags e se organizavam em práticas próprias.
“Se você for perguntar para um pichador porque picha, você vai ter várias respostas, mas que elas vão dialogar em lugares muito comuns, que é essa coisa da crítica ao sistema, do lutar contra o sistema”, disse Anderson Eslie.
Quando a pichação vira marca de facção
Pesquisadores notaram que grupos do tráfico passaram a usar a pichação como instrumento de sinalização e controle territorial. Ao regular espaços fora do Estado, essas facções incorporaram números, siglas e símbolos para identificar áreas de atuação e alianças.
- Elementos adicionados: números e siglas.
- Símbolos comuns: escorpião, carpa e a estrela de Davi.
Antônio dos Santos Lima, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, explica que essa dominação buscou exclusividade e expansão econômica e territorial. As facções passaram a impor regras extrajudiciais e a criar simbologias próprias.
“Comando Vermelho resolveu chegar aqui na Bahia e fazer esse acordo com eles e mudar o nome”, disse Antônio dos Santos Lima.
Segundo ele, a chegada de organizações mais estruturadas do Sudeste alterou as estratégias locais: embora muitos dos traficantes sejam baianos, houve mudança na denominação e adoção de práticas trazidas por aliados externos. Ainda assim, há diferenças importantes em relação a outros estados — por exemplo, na Bahia não há relatos de cobrança direta a comerciantes por serviços como internet ou gás.
“Aqui ninguém pede nada dos comerciantes”, disse Antônio dos Santos Lima.
Estigma e confusão
A associação entre pichação e crime reforça estigmas que já existiam. Mas a prática segue sendo plural: envolve torcidas organizadas, coletivos artísticos e jovens das periferias. É por isso que o público, muitas vezes, confunde pichadores com traficantes — duas realidades que podem se sobrepor, mas nem sempre são a mesma coisa.
Como, então, distinguir um gesto artístico de uma sinalização criminosa? Não há resposta simples. O que fica claro, segundo os especialistas, é que a pichação em Salvador hoje carrega camadas históricas, políticas e também utilitárias — e que sua leitura depende do contexto em que aparece.
Em resumo: o uso da pichação para demarcar territórios por facções é um fenômeno real e estudado por pesquisadores, mas a prática continua aberta a vários grupos e significados. Isso torna a cena urbana da cidade complexa e, por vezes, difícil de decifrar.