Vênus é marcado por centenas de estruturas circulares chamadas coronae — mais de 700, segundo mapas — e elas continuam a intrigar os cientistas. Um estudo recente tenta juntar as peças desse quebra-cabeça e oferece uma explicação diferente daquelas que conhecíamos até agora.
Publicado em 16 de setembro na revista PNAS, o trabalho de pesquisadores do Instituto de Oceanografia Scripps, da Universidade de San Diego (EUA), propõe a existência de um ‘teto de vidro’ no manto de Vênus. A ideia é que essa camada rígida aprisione calor e gere correntes lentas e instáveis, capazes de moldar as feições em forma de coroa que vemos na superfície.
Por que isso é surpreendente?
Ao contrário da Terra, Vênus não tem placas tectônicas — sua crosta é contínua —, o que torna difícil encaixar as coronae nas explicações clássicas de dinâmica planetária. As feições variam bastante: há coronae com centenas de quilômetros de diâmetro e outras bem menores, com formatos diversos.
Antes, hipóteses ligavam coronae maiores (acima de 500 km) a plumas do manto e a processos como subducção ou delaminação, enquanto coronae menores (da ordem de 200 km) eram comparadas a plumas menores, como bolhas subindo em uma lâmpada de lava. Essas ideias faziam sentido, mas nunca tiveram uma comprovação definitiva.
“Em Vênus, há um padrão que está nos dizendo algo”, disse Madeleine Kerr, doutoranda no Instituto de Oceanografia Scripps e autora principal do trabalho.
Segundo os autores, a camada proposta — situada entre cerca de 600 e 740 km de profundidade — funcionaria como uma barreira. Plumas pequenas, ao atingir esse ‘teto’, perderiam força e se espalhariam lateralmente; apenas as plumas mais vigorosas conseguiriam atravessá-lo e formar grandes elevações vulcânicas. Em outras palavras: algumas correntes ficam ‘achatadas’ e outras atravessam, gerando diferentes tipos de coronae.
Os modelos computacionais mostraram que ‘gotejamentos’ de rocha fria, vindos da base da crosta estagnada, podem iniciar um processo que gera várias plumas secundárias. Esses fluxos de calor sobem, produzem fusões e podem afundar novamente, explicando a variedade de formas e tamanhos observados nas coronae.
“Nosso conhecimento atual de Vênus é análogo ao período pré-teoria das placas tectônicas nos anos 1960, porque ainda não temos uma explicação unificadora que ligue a transferência de calor interno às feições tectônicas e magmáticas observadas na superfície”, afirmou David Stegman, professor de geociências na Universidade de San Diego e coautor do estudo.
Os pesquisadores também testaram condições térmicas: os modelos funcionaram para um manto venusiano entre −23,1 °C e 126,8 °C mais quente que o da Terra, embora não se saiba por quanto tempo esse estado poderia durar. Importante: enquanto simulações anteriores precisavam inserir plumas já formadas, os novos cálculos oferecem um mecanismo natural para a gênese inicial desses fluxos térmicos.
Próximos passos
Os autores deixam claro que a hipótese precisa ser testada e refinada. Entre as próximas etapas apontadas estão:
- rodar simulações tridimensionais mais detalhadas;
- incluir processos de fusão dentro e sobre a superfície;
- considerar diferentes composições do manto;
- analisar a evolução térmica de Vênus ao longo de sua história.
Será que esse ‘teto de vidro’ é a peça que faltava no quebra-cabeça de Vênus? A proposta traz um mecanismo plausível e bem modelado, mas ainda depende de estudos adicionais para virar uma explicação consolidada. De qualquer forma, é um passo importante para entender como o calor interno e os movimentos do manto podem ter esculpido a paisagem venusiana.